Sebastião Godinho resgata histórias do maestro paraense que em 2019 completaria 114 anos
Era 15 de fevereiro, em Belém do Pará. O ano: 1905. Nascia, naquele data, um dos mais importantes nomes da música paraense: Waldemar Henrique. O maestro, ícone da cultura regional, completaria 114 anos em 2019 e ganhou homenagens em espetáculo musical no Theatro da Paz, palco de tantas celebrações ao músico e que também está no berço neste mês: completou 141 anos.
Alegre, humilde, de coração generoso, conselheiro, educado e gentil, o maestro assim é descrito pelas pessoas que eram próximas dele, como o advogado e escritor Sebastião Godinho, que conviveu com Waldemar Henrique por mais de 20 anos. “Eu tinha mais ou menos 17 anos. Sempre gostei muito de desenhar e eu tinha um sonho de rapaz, de jovem, que era fazer uma exposição de pintura no Theatro da Paz. Havia, naquela época, uma galeria de arte, a galeria Ângelus, que foi uma galeria de artes criada pelo próprio maestro. Eu frequentava, era jovem, sonhador, frequentava essa galeria e via outros artistas expondo e eu também queria expor meus trabalhos lá”, detalhou.
Foi nessa busca pelo sonho de expor seus trabalhos na Galeria Ângelus que Sebastião Godinho teve seu primeiro contato com o maestro. “Me enchi de coragem e fui lá ao teatro. Eu não o conhecia. Não sabia quem era Waldemar Henrique, na verdade eu queria falar com o diretor do teatro. Quando cheguei lá ele me recebeu muito bem, ele estava nessa ocasião acompanhado do dr. Mauricio Coelho de Souza, médico, intelectual, e eu com 17 anos, muito tímido, me apresentei para ele. Disse que tinha um sonho de fazer minha exposição lá, e ele me acolheu muito bem, foi uma pessoa extremamente solícita comigo”, disse.
O escritor recorda que quando o maestro pediu para ver seus desenhos foi rapidamente em casa buscá-los para mostrar. “Peguei os desenhinhos, eram umas bobagens, coisas de garoto, aí levei para ele. Eu não sabia, mas hoje tenho consciência de que ele foi extremamente generoso comigo, porque realmente os trabalhos que eu tinha não eram trabalhos bons, mas mesmo assim ele me liberou a galeria e pagou, porque havia uma taxa que se pagava pelo uso do espaço da galeria, durante sete dias. Eu não tinha dinheiro, era jovem, pobre e ele pagou para mim. Ele tirou dinheiro do bolso dele e pagou para mim”, afirmou Godinho, que depois, com o passar do tempo, descobriu que essa prática do maestro era comum - ele buscava ajudar todos os artistas.
Waldemar Henrique foi um paraense que deixou os artistas órfãos, como diz Godinho. “Todos nós, artistas em geral, somos órfãos de Waldemar Henrique. Pela generosidade dele, esse amor que ele tinha pela cultura, pelas artes do modo geral e, naturalmente, pelos artistas, por todos aqueles que faziam arte em Belém. Como tem muitos que ainda estão por aqui, que são da época dele, como Yuri Guedelha, e outros artistas que conheceram o maestro e podem testemunhar exatamente o que estou dizendo, essa generosidade que ele tinha com os artistas”, ressaltou.
Sebastião Godinho passou a trabalhar diretamente com o maestro, na direção do Theatro da Paz. Quando Waldemar Henrique se aposentou, aos 70 anos, Godinho continuou a trabalhar com ele, dessa vez como secretário, na casa do músico. “A gente já tinha uma amizade muito forte. Ele me disse: ‘Godinho, eu estou me aposentando e eu tenho dois sonhos na minha vida, que eu quero fazer antes de morrer. Um é escrever meu livro de memórias e o outro é organizar um song book com as minhas músicas’, um livro com todas as músicas dele”, disse o escritor. A amizade do maestro com o escritor durou até a morte de Waldemar Henrique.
Sebastião Godinho contou que Waldemar Henrique gostava muito de escrever cartas, que escrevia mais de cinco cartas todos os dias para os amigos, e desse material sairiam suas memórias. A idade avançada, porém, e problemas na vista (Waldemar ficou cego de um dos olhos) impediram que o maestro escrevesse suas lembranças. Godinho reuniu tudo o que o maestro havia escrito até aquele momento, cartas, livros, textos para a imprensa, discursos, e organizou as memórias. “Eu consegui reunir num livro chamado ‘Só Deus sabe porque’ toda a produção literária dele. Discurso de posse na Academia Paraense de Letras, por exemplo, discurso de posse na Academia Brasileira de Música, crônicas, peças de teatro que ele escreveu, artigos, palestras, tudo isso eu consegui reunir juntamente com uma fotobiografia. Peguei as fotos dele desde quando ele era criança até mais ou menos a idade de 89 anos, quando nós encerramos o livro. Lançamos em 1990”, explicou.
O escritor detalhou que Waldemar Henrique tinha o costume de escrever diários. “Eu tenho esses diários comigo até hoje. São mais ou menos uns 120, 130 diários, tenho lá na minha casa, até resguardo com muito carinho porque ali tem muitas críticas. Ele não deixava ninguém tocar nesses diários dele. A única pessoa que tinha acesso a isso era eu”, ressaltou.
E foi desses diários que saiu o nome do título do livro de memórias "Só Deus sabe porque". “Uma vez eu estava lendo o diário, e mais ou menos em 1930-1933 ele escreveu: ‘Preciso escrever meu livro de memórias, eu já tenho até o título: Só Deus sabe porque’. Então eu peguei esse título, que ele mesmo bolou lá atrás”, detalhou.
Para realizar o segundo desejo do artista, Sebastião Godinho tentou organizar as partituras que o maestro compunha. No entanto, por não ser músico, sentiu dificuldades e passou essa responsabilidade para o conservatório Carlos Gomes, atual Instituto Carlos Gomes, que organizou as composições e publicou o livro em dois volumes. “A Secretaria de Cultura também lançou, há mais ou menos cinco ou seis anos, três CDs com as obras dele. É muito interessante, porque não reúne só as obras conhecidas dele, principalmente aquelas ligadas diretamente à mitologia Amazônica, mas também aquelas músicas que ele fez para teatro, para cinema”, afirmou.
Waldemar Henrique morreu em 29 de março de 1995. Sebastião Godinho foi um dos privilegiados pela companhia do maestro. Para os admiradores restou a saudade. Para os fãs, essa data de recordação daquele que tanto contribuiu para a cultura paraense.
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